sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Até um dia


Minha avó sempre foi muito sentimental, e um tantinho dramática. Ao atender o telefone, só de falar "alô" já caía em prantos. Todos os filhos e netos tiravam sarro dela. Se ficava brava, ela não guardava os pratos - simplesmente os colocava no armário com toda a força e barulho de louça que era capaz de fazer. As expressões "ai, minha nossa senhora" e "puta que o pariu" andavam lado a lado. O leite escorria? "Ai minha nossa Senhora, puta que o pariu"; a criança caiu? A mesma frase era dita.
Mas a vó gostava de casa cheia. Almoço de domingo eram sempre duas mesas - a das crianças e a dos adultos. Com o tempo, já não tinha mais crianças, mas havia duas mesas mesmo assim. Nos almoços, ela sempre perguntava ao genro, meu pai: "quer pão, Sergio?" - mesmo que ele nunca tenha comido pão com a refeição. Lembro de quando era criança, e pedia para minha mãe o "arroz da vó", que tinha um gosto todo especial porque ela fazia com banha. Coisas de casa de vó.
À tarde sempre tinha pipoca, bolinho do padre, doces de compota (o de abóbora era o mais corriqueiro, mas tinha de laranja, carambola, mamão, figo) bem açucarados para se comer com queijo. E não podia faltar o café (com bastante açúcar, também).
Lia sempre o jornal à tarde e assistia TV. Mas, como o mundo é mundo, e a terra gira, o tempo passou.
E a vó foi ficando velhinha. E com a velhice vieram as dificuldades inerentes da idade. Há dois anos ela caiu e quebrou o fêmur. Operou, mas a cama virou sua nova rotina. Minha mãe e minha tia se desdobraram em cuidados mil, deixando de lado suas vontades, saúde, passeios, para cuidar dela. Nesses dois anos vi cansaço, compaixão, desespero, resiliência. Domingo dia 05 minha avó fez 91 anos e pude ver um corpinho mirrado, que já não tinha forças para ficar sentada sem apoio, com os olhos distantes, e uma fala quase muda - ela que sempre foi tão agitada para falar e que adorava contar sua história, ela dormiu antes de cantarmos parabéns, talvez porque soubesse que o "muitos anos de vida" não seria mais deste lado.
Hoje, enfim, quietinha, ela se foi. Dormiu aqui, para acordar em outro plano. Vó, vá com Deus. E mande lembranças ao vô.